A companheira Nana Caymmi

Bogotá, 31 de maio de 2025

Ouvi por acaso, no portão de embarque do Galeão. Uma senhora de cabelos grisalhos, puxando uma mala pequena, disse com pesar: “Você soube que a Nana Caymmi morreu? Gostava tanto dela…” A filha, adolescente, fones no ouvido e celular na mão, respondeu de bate pronto: “Bolsonarista. Foi tarde.” A mãe se calou. Eu também.

Durante anos, nos fizeram acreditar que ser de esquerda exigia discursos inflamados, panfletos, marchas. Tolice. Quem quiser saber o que é uma alma revolucionária precisa apenas colocar um disco da Nana Caymmi. Qualquer um que ela abra os trabalhos com a dolorosa lucidez de quem sabe que amar é um gesto insurgente. Mas vamos por partes.

Nana Caymmi votou em Bolsonaro. Está dito. Está registrado. Mas, para além do CPF da cidadã, me interessa a artista. E essa, meus amigos, militou. Militou com voz grave, com afinação que parece costurar cicatrizes, com repertório que recusava os catecismos da estética dominante. Só alguém profundamente comprometida com a delicadeza como potência política seria capaz de interpretar Resposta ao tempo como um manifesto contra o cinismo generalizado. Já escutaram ela cantando Chora brasileira, da Fátima Guedes? Ou Atrás da porta, com aquele esgar de dor que desautoriza toda forma de silêncio opressor? Aquilo é grito, não lamento.

E por falar em opressão, Nana nunca se curvou ao mercado. Gravava o que queria, com quem queria, do jeito que achava bonito. Resistir ao modismo é um dos maiores atos de rebeldia que se pode cometer no Brasil. Enquanto o mercado fonográfico repetia fórmulas e perseguia tendencias, Nana seguia seu próprio compasso. Você quer mais? Repare no que ela escolhia cantar: Lupicínio. Chico. Edu. Dori. Paulinho. Milton. Tom. Aldir. Fato é que, se um dia encontrarem um dossiê de fichamento ideológico da música popular brasileira, a discografia de Nana estará lá como prova material de uma sensibilidade marxista-afetiva. Nana entendia que cantar bem não bastava: era preciso escolher bem o que cantar. E nisso, ela foi radical.

Convenhamos: ser bolsonarista é assinar embaixo do racismo, da homofobia, da desumanização, da mentira erguida como política de Estado. Não, meus amigos, eu não aceito. E sei que você também não aceita. Claro, existem as entrevista. Há os comentários ríspidos. Há o conservadorismo confesso. Mas há também um paradoxo brasileiro que ela encarna como poucos: a artista que, com voz de elite, canta a dor de quem nunca teve voz. Nana não se dizia de esquerda. Mas sua arte, ah... sua arte plantava comunismo no coração de quem ouvia sem defesas.

A verdade, companheiros, é que talvez nem ela soubesse. Mas cada vez que ela entoava um samba-canção como se fosse um discurso no sindicato, um tango como se fosse um manifesto, um bolero como se fosse uma denúncia, o mundo ficava um pouquinho mais justo. E é isso que importa. Talvez hoje isso seja pouco, é verdade. Os tempos são outros, os tempos são loucos.

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