Álbum #1: Boca do Tempo, de Sergio Krakowski (2025)

20 de julho de 2025

Capa do álbum Boca do TempoSergio Krakowski começou a tocar pandeiro aos quinze anos. Aos dezoito, já era presença constante nas rodas de choro da Lapa. Enquanto mergulhava na linguagem do choro, também se deixava atravessar por outras paisagens sonoras, aproximando-se do funk carioca, por exemplo. Desde o início, sua escuta buscava os cruzamentos, os deslizamentos, a fricção entre formas e tradições. Essa disposição porosa, que religa práticas e dimensões aparentemente inconciliáveis, se tornaria o horizonte de sua obra. A primeira crítica do Tomando Nota se volta a Boca do Tempo (2025), seu trabalho mais recente, situando Krakowski num arco de inflexões na história de um instrumento que talvez melhor que qualquer outro condense as complexidades do Brasil: o pandeiro.

Parte 1. A primeira torção

No último 16 de julho, Sergio Krakowski lançou Boca do Tempo, seu mais recente álbum, pelo selo Rocinante. É o segundo trabalho do músico pela gravadora dirigida por Sylvio Fraga, o primeiro foi Mascarada (2019), em parceria com Jards Macalé. Mas o que desemboca nesta boca começou muito antes, e desde seus primeiros gestos já apontava para um mesmo horizonte: a expansão do instrumento em direção a uma outra gramática. Para sermos didáticos, comecemos pelo começo.

Em 2002, o grupo Tira Poeira — formado por Henry Lentino (bandolim), Caio Márcio (violão), Samuel de Oliveira (sax soprano), Fábio Nin (violão de sete cordas) e Sergio Krakowski (pandeiro) — gravou seu primeiro álbum. A faixa de abertura é Murmurando, um choro muito famoso de Mário Rossi e Octaviano Romero Monteiro. Esta, salvo engano, é uma das primeiras experiências fonográficas do Sergio. Proponho um exercício simples: escutar a versão do grupo Tira Poeira ao lado da célebre interpretação de Murmurando por Jacob do Bandolim, com Jorginho do Pandeiro.

É possível perceber que enquanto Jorginho do Pandeiro sustenta um pulso regular e contínuo — o que os músicos chamam de “cama” —, ancorando a interpretação de Murmurando num paradigma em que o pandeiro funciona como eixo de estabilidade rítmica para que os demais instrumentos se movimentem, Sergio Krakowski tensiona esse lugar. Sua abordagem rompe com a ideia de que a função do pandeiro é manter o tempo nos trilhos. Em vez disso, desloca o instrumento para uma zona de instabilidade controlada, onde a fluidez é mais importante que a fixação.

Tecnicamente, essa diferença se expressa por variações nos modos de acentuação, flutuações dinâmicas radicais e, sobretudo, pela manipulação deliberada do silêncio. O que em Jorginho é presença contínua, quase um mantra rítmico, em Sergio é respiração. O som emerge e se retrai, abre fendas, suspende o fluxo, escorrega pelas bordas do compasso. O pandeiro deixa de ser apenas eixo métrico para se afirmar como superfície de invenção. Desestabiliza com método.

E essa inflexão não é apenas técnica, ela desorganiza a escuta habitual e propõe um outro regime de presença, que diga-se de passagem vai se radicalizar em seus trabalhos mais recentes. O gesto já não sustenta os demais, convoca-os a habitar um espaço em constante reconfiguração. Trata-se de uma desmontagem sutil da função histórica do pandeiro e, ao mesmo tempo, da abertura para um alargamento estético que se tornará uma das marcas fundamentais de sua obra.

Mas vale lembrar: estamos falando apenas da primeira faixa do primeiro álbum. Para compreender com mais nitidez as proposições que Krakowski desenvolve ao longo de sua trajetória — e que culminam em Boca do Tempo —, é preciso olhar para trás. Recuar o ouvido e identificar, no percurso do instrumento, os pontos de inflexão que tornaram possível imaginar o pandeiro como ele hoje se apresenta.

Parte 2. Percurso do pandeiro

Poucos instrumentos musicais estão tão profundamente imbricados na construção simbólica de uma nação quanto o pandeiro está na do Brasil. Sua sonoridade constitui o eixo pulsante de gêneros como o samba e o choro, mas essa consagração é apenas o último capítulo de uma história marcada por deslocamentos geográficos, confluências culturais, repressões sistemáticas e sucessivas reinvenções técnicas. Em diversas camadas, ele encarna a própria lógica da miscigenação, não como metáfora pacificadora, mas como fricção entre formas, ritmos e regimes de escuta.

Sua linhagem remonta à vasta família dos frame drums (tambores de aro), disseminados desde a Antiguidade em diferentes culturas. O percurso que o trouxe ao Brasil passou pela Península Ibérica medieval, onde séculos de convivência — e, claro, conflito! — entre muçulmanos, judeus e cristãos criaram um ambiente de intensa contaminação cultural. Nesse contexto, variantes como o duff árabe, o tof hebraico e o tympanum latino coexistiram e se influenciaram mutuamente, gerando formas híbridas. Foi ali, entre o final do século XIV e o XV, que o instrumento incorporou as platinelas (ou soalhas), elementos responsável pela sonoridade metálica que hoje o constitui.

O pandeiro que os portugueses trouxeram ao Brasil no século XVI já não era, portanto, um artefato “europeu”, mas um objeto atravessado por múltiplas heranças, impregnado de ressonâncias mediterrâneas e orientais, uma espécie de arquivo portátil de sonoridades porosas. Em território brasileiro, essa história sonora se reconfigurou mais uma vez. Os padres jesuítas, atentos à força da música como ferramenta de conversão, usaram o pandeiro nas missões de catequese, adaptando cantos sacros ao universo indígena. Os jesuítas, como aprendi com Alcir Pécora e João Adolfo Hansen, eram verdadeiros técnicos da conversão. Há registros epistolares que confirmam o uso do pandeiro como instrumento de mediação cultural. A Valéria Zeidan Rodrigues pesquisou a respeito.

Diria, no entanto, que o momento mais decisivo para a transformação do pandeiro no que hoje conhecemos viria com a diáspora africana. A iconografia dos séculos XVII e XVIII já o mostra nas mãos de negros escravizados, que não apenas se apropriaram do instrumento, mas lhe impuseram uma nova lógica rítmica, um novo corpo técnico, uma outra escuta. A mudança fundamental foi a postura de execução. A posição vertical tradicional foi substituída por uma posição horizontal, ao que parece, genuinamente brasileira, que permitia o uso da palma da mão no centro da membrana para criar o “tapa” — um som seco e cortante. Para entender que “tapa” é este, escute, por exemplo, a faixa Santa Morena, do mesmo álbum do Tira Poeira (2003).

A hipótese que vigora é que sem acesso a seus tambores ancestrais, os africanos escravizados adaptaram o pandeiro à sua musicalidade, explorando ao máximo sua materialidade reduzida. O resultado foi um instrumento pequeno em dimensões, mas imenso em possibilidades. Um atabaque portátil. Essa reorientação técnica permitiu o surgimento de padrões rítmicos de altíssima complexidade, muito além da simples marcação de tempo. O pandeiro se tornou, no Brasil, mais do que um marcador, tornou-se território de invenção, espaço de improvisação, superfície política. E como tal, foi combatido.

Um dos episódios mais emblemáticos dessa repressão é a perseguição sofrida por João da Baiana (1887–1974), figura seminal do samba carioca e primeiro grande pandeirista a ganhar projeção pública. Como mostram os estudos de Eduardo Marcel Vidili, a violência dirigida contra ele não se tratava de um caso isolado, mas de uma política sistemática de controle social, racial e cultural nas primeiras décadas da República. O pandeiro, em suas mãos, tornava-se corpo de delito, instrumento de uma música negra, de uma prática ritualizada, de uma presença urbana que desafiava o projeto de “civilização” das elites brancas.

Não era o gesto musical em si que era criminalizado, mas o corpo negro, popular, periférico que o executava. João da Baiana não apenas foi preso inúmeras vezes, como teve seus pandeiros destruídos pela polícia, em um gesto que visava silenciar não apenas o som, mas tudo o que ele significava. Sua famosa entrevista de 1939 à revista Carioca, acompanhada por uma foto atrás das grades, provavelmente encenada para efeito de denúncia, é uma síntese daquilo que o Estado tentava apagar e daquilo que a memória insistia em preservar.

Mesmo sua “reabilitação”, intermediada pelo senador Pinheiro Machado, que lhe presenteou com um novo pandeiro e um bilhete que funcionava como salvo-conduto, revela a ambiguidade estrutural das relações de poder. Pode-se dizer que João da Baiana, considerado o patriarca dos pandeiristas, representa a transição entre a repressão institucional e a legitimação simbólica da cultura negra nas esferas públicas da música. Nascido na Pequena África, no coração da comunidade baiana do Rio, foi um dos primeiros a levar o pandeiro dos quintais aos palcos, aos estúdios e ao rádio. Sua técnica “batucada”, baseada em tapas fortes e sonoridade encorpada, estabeleceu uma das matrizes primordiais do instrumento.

Imagem do álbum Boca do Tempo

Carioca, 1939 (memoria.bn.br)

Ao seu lado, outras figuras contribuíram para ampliar o espectro expressivo do pandeiro. Alfredo Alcântara, o “Pandeirista Infernal”, pernambucano radicado no Rio, foi pioneiro na incorporação da performance visual ao domínio percussivo, realizando malabarismos que encantavam o público dos teatros de revista e das turnês internacionais. Em suas mãos, o instrumento deixava de ser apenas um suporte rítmico para se tornar espetáculo em si.

A ascensão do rádio como principal meio de difusão musical e a consolidação da gravação elétrica na década de 30 criaram um novo ecossistema sonoro em que o pandeiro encontrou terreno fértil. Tornou-se onipresente nos “conjuntos regionais”, a formação-base das emissoras de rádio, adaptando-se perfeitamente às exigências técnicas da época. Sua projeção acústica, sua maleabilidade rítmica e sua densidade tímbrica o tornaram ideal para preencher o espaço entre harmonia e percussão. A partir desse momento, o instrumento não apenas ganha ubiquidade nos discos, como também se torna mediador sensível daquilo que Jennifer Stoever chamou “linha de cor sonora”, ajudando a inserir a percussão afro-brasileira no imaginário nacional, sob os termos e tensões do projeto de brasilidade então em disputa.

Com o rádio, surgem também os ídolos. Uma nova geração de pandeiristas ganhou visibilidade, definindo estilos, consolidando sotaques e moldando aquilo que, décadas depois, seria visto como tradição. Russo do Pandeiro (1913–1985), herdeiro direto da linhagem de João da Baiana, combinava a força percussiva da batucada com o virtuosismo cênico herdado de Alcântara. Sua marca registrada era o tapa constante na última semicolcheia — um gesto que condensava precisão, força e assinatura estética. Já Popeye, que o substituiu no Regional de Benedito Lacerda em 1937, inaugurou uma vertente mais “contida”, privilegiava os graves suaves, eliminava os tapas e conduzia o ritmo pelas platinelas, instaurando o estilo conhecido como caracaxá — uma oscilação microrrítmica que produzia um balanço sutil e elegante, logo convertido em padrão hegemônico no choro.

Ao final da década de 1930, o percurso de legitimação do pandeiro parecia completo. O instrumento conquistara palcos, rádios, estúdios e até os salões da elite. A repressão que o criminalizava havia sido substituída por um entusiasmo nacionalista que o elevava a símbolo. O que antes era caso de polícia passava a ser emblema da festa. Canções como Aquarela do Brasil (1939), de Ary Barroso, e Brasil Pandeiro (1940), de Assis Valente, fixaram a imagem de um país mestiço, musical e alegre — com o pandeiro como ícone acústico dessa representação.

Entre os nomes que consolidaram o pandeiro como núcleo expressivo da música popular brasileira, Jorginho do Pandeiro ocupa um lugar decisivo. Membro do Época de Ouro, conjunto idealizado por Jacob do Bandolim nos anos 1960, Jorginho representava ao mesmo tempo a continuidade da linhagem iniciada por João da Baiana e um ponto de inflexão técnica que reposicionaria o instrumento dentro das práticas do choro. Sua execução é, por muitos, considerada exemplar: firme sem rigidez, clara sem exagero, marcada por um equilíbrio raro entre presença e discrição.

Dino, Paulinho da Viola e Jorginho do Pandeiro

Dino, Paulinho da Viola e Jorginho do Pandeiro (Arquivo Jorginho do Pandeiro)

Jorginho depurou o estilo caracaxá de Popeye, deu-lhe densidade e precisão, mas também reintegrou elementos da batucada em certos contextos, sem perder a fluência do conjunto. Sua abordagem, mais do que técnica, é sintática: estabelece uma gramática do pandeiro dentro do choro, abrindo espaço para uma escuta onde o instrumento já não é pano de fundo, mas partícipe ativo da narrativa sonora. Em Jorginho, o pandeiro atinge um grau de estabilidade formal que ao mesmo tempo consolida um cânone e prepara o terreno para as futuras desmontagens.

O mais importante ponto de inflexão na história da técnica do pandeiro depois de Jorginho foi Marcos Suzano. Se Jorginho representou o ápice de uma tradição que consolidou o pandeiro como base rítmica do choro moderno, Suzano foi quem a subverteu de modo decisivo. Em vez de refinar o legado, ele o reorganizou desde a base — reinventando o gesto, reconfigurando a escuta e redefinindo a atuação do instrumento. Uma de suas principais inovações foi a centralidade dos graves criados com a ponta dos dedos, libertando o pandeiro de uma mecânica canônica marcada por certa limitação na variabilidade dos acentos.

Ao reverter a ordem tradicional — na qual o gesto iniciava pela perta inferior do instrumento —, Marcos Suzano inaugura uma sintaxe invertida que libera o pandeiro para conduções rítmicas até então inéditas. Essa reordenação não é apenas técnica; é uma mutação na própria arquitetura do ritmo. A partir dela, torna-se possível que um único pandeiro simule, com precisão e nuance, a combinação de bumbo, caixa e chimbal, operando como uma síntese percussiva completa. Isso reposiciona o instrumento em seu campo de atuação: não mais limitado ao samba ou ao choro, mas plenamente apto a habitar formações de MPB, música pop, eletrônica ou experimental.

O pandeiro, agora, deixa de ser signo exclusivo de um universo cultural para se tornar plataforma de invenção com vocação universal. Seu som já não remete a um gênero, mas a uma estratégia — ele condensa texturas, constrói atmosferas, sustenta arranjos inteiros. Ao fazer do pandeiro uma máquina portátil de ritmos, Marcos Suzano ampliou radicalmente seus horizontes expressivos — e abriu o caminho para que músicos o levassem ainda mais longe. O álbum Olho de Peixe (1993) assinado por Marcos Suzano e Lenine é um exemplo paradigmático do lugar que o pandeiro ocupará nas mãos de Suzano. Escute a faixa que dá nome ao álbum.

Se depois de Jorginho do Pandeiro a escola aberta por Marcos Suzano redefiniu a técnica e o imaginário do instrumento, é possível afirmar que o ponto de inflexão mais importante após essa virada se dá com Sergio Krakowski. Porque se é verdade que Suzano redesenhou a mecânica do pandeiro, instaurando um novo corpo técnico e abrindo uma vastidão de possibilidades expressivas, também é verdade que seu pandeiro, mesmo em performances eletrificadas e esteticamente ousadas, permaneceu em grande medida vinculado à função de estabilização rítmica.

Ao microfonar o instrumento, processá-lo com pedais de efeito e inseri-lo em formações não convencionais, Suzano ampliou radicalmente seus usos — mas sem romper com sua lógica fundante: ser o chão sobre o qual o pulso se organiza. Nesse sentido, por camadas mais profundas do ofício, ele ainda compartilha a lógica estrutural de João da Baiana. Krakowski, por outro lado, recusa essa função como ponto de partida. Seu pandeiro não busca estabilizar, mas tensionar; não organiza, mas desloca. Mais do que ampliar o vocabulário, ele altera o regime de funcionamento do instrumento. Ao desenvolver mecanismos de interação computacional em tempo real, Krakowski transformou o instrumento em interface. Poderíamos dizer, em resumo, que, se Suzano ampliou enormemente o léxico do pandeiro, Krakowski não apenas desestabilizou sua sintaxe, ele propôs outra gramática.

Parte 3. Reimaginar o gesto

Voltamos agora ao ponto de partida deste texto: o recente lançamento do álbum Boca do Tempo, de Sergio Krakowski, pela gravadora Rocinante.

Avaliação por palmas

Com produção musical e mixagem de Pedro Durães, o disco consolida e tensiona muitas das proposições que vimos traçar até aqui — especialmente no que diz respeito à desestabilização do pandeiro como base rítmica e à sua reformulação como superfície expressiva, tecnológica e composicional. A estrutura do álbum é formalmente simples, mas conceitualmente densa, são nove faixas distribuídas em dois lados. No Lado A, temos Elebara (domínio público), Nunca ninguém não quer, Dongueragan e Avalanche. No Lado B, Chica, Elo, Alga, Dentro do Dentro e Renegue não. Com exceção da faixa de abertura, todas as composições são assinadas por Krakowski.

Elebara, faixa de abertura do álbum, não está ali por acaso. Elebara — ou Elegbara — é uma das qualidades de Exu, o orixá dos caminhos, a quem se canta e se toca em primeiro lugar nos rituais. É ele quem abre os trabalhos, prepara o espaço, assenta o axé. Aqui, ele é também quem instaura a escuta. Começar um álbum saudando Exu não é apenas um gesto simbólico; é uma decisão estrutural que inscreve o disco na lógica do xirê, onde o tempo não é linear, mas espiralar e suspenso. A escolha de um canto tradicional do candomblé ketu, reconfigurado por processos eletrônicos e improvisação, é significativa. O pandeiro, aqui, não traduz diretamente os toques do candomblé, mas se aproxima de seus fundamentos. Em especial, da centralidade do grave — como o rum, o atabaque mais encorpado, aquele que fala com os corpos e enuncia frases compreendidas em movimento. É esse grave que, logo de início, convoca, interpela e reorganiza os sentidos.

A materialidade sonora de Boca do Tempo não pode ser dissociada do trabalho de pesquisa que Krakowski desenvolveu no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), onde defendeu uma tese de doutorado que propõe um modelo formal para sistemas musicais interativos baseados em ritmo. Seu objetivo era permitir que um músico, com seu instrumento acústico — no caso, o pandeiro —, interagisse em tempo real com um computador sem abrir mão da improvisação. A resposta, construída a partir de teoria de autômatos, estruturas hierárquicas de modos de interação e análise em tempo real do sinal de áudio, resulta em um sistema que transforma ritmo em linguagem de controle.

Diferente de abordagens centradas em sensores ou controladores físicos, Krakowski desenvolveu uma interface rítmica, onde padrões, pausas e ataques se tornam comandos para gerar loops, acionar timbres, alterar comportamentos, controlar imagens. O músico deixa de apenas tocar para a máquina e passa a conversar com ela, delegando a execução mas nunca a forma. Seu instrumento já não é apenas um processador de timbres, mas um operador de fluxos, e o que está em jogo já não é apenas a ampliação sonora, mas a arquitetura mesma do acontecimento musical.

Em outras palavras, os sons eletrônicos que ouvimos ao longo de Boca do Tempo — ruídos processados, melodias, camadas sintetizadas, texturas —, em geral, não são adicionados externamente de forma aleatória ou programada. Eles são acionados em tempo real pelo próprio pandeiro. Cada ataque, silêncio, repetição ou acento executado por Krakowski é interpretado pelo sistema que ele mesmo desenvolveu, convertendo o gesto rítmico em comandos que disparam, modulam ou interrompem os sons eletrônicos.

Isso significa que o instrumento acústico não apenas convive com o digital, mas o orquestra, instaurando uma escuta em que matéria e mediação se fundem, e em que não se pode mais separar, com facilidade, o que é percussão e o que é programação. O mais interessante, no entanto, é que essa relação não se dá em termos de causa e efeito simples. Um gesto intencional do músico — um toque, uma pausa, uma acentuação específica — pode acionar uma resposta sonora não inteiramente previsível.

O sistema, ao interpretar esse gesto, responde segundo regras programadas, mas abre margem para o inesperado. Isso significa que, no calor da improvisação, o músico é constantemente surpreendido pela máquina e precisa, ele próprio, improvisar uma nova resposta. É nesse vaivém — em que intenção e escuta se embaralham, e controle cede espaço ao jogo — que se instaura o verdadeiro diálogo. Ao que parece, Krakowski não apenas toca com o computador, ele conversa com ele. E essa conversa, como toda boa conversa, é feita de desvios, ruídos, surpresas e reinvenções.

Outro aspecto fundamental de Boca do Tempo é o uso da voz como extensão percussiva — não apenas no que diz, mas sobretudo no modo como diz. Em faixas como Nunca ninguém não quer ou Dentro do dentro, a aglutinação proposital das palavras chama atenção para a materialidade da língua, seu ritmo interno, sua textura sonora. Em Dongueragan, essa dimensão se intensifica: o título deriva de uma torção fonética do verso “Don’t get a gun to get to God”, condensando em um vocábulo inventado toda uma carga rítmica.

Mas esse gesto não é gratuito. Ele se inscreve numa longa tradição de oralização do ritmo, presente tanto nas práticas performativas, como no samba, quando se “canta o pandeiro” com a boca para ilustrar sua levada, quanto no ensino da música. O próprio maestro Letieres Leite, em seu Método Universo Percussivo Baiano (UPB), formalizou esse princípio como base pedagógica. Trata-se de um saber largamente difundido, enraizado nas práticas afro-brasileiras, nas rodas, nos terreiros, nas escolas de música populares e em tantas cenas vivas. Em Boca do Tempo, essa oralidade não apenas sobrevive, ela se transforma em signo composicional.

Ainda que a pesquisa sonora e rítmica seja o eixo mais visível, o álbum também abriga uma dimensão composicional mais próxima da canção. Isso se evidencia, por exemplo, em Chica — faixa que homenageia figuras femininas de forma ampla, mas que se volta especialmente para a memória de Chiquinha Gonzaga, evocada na letra como “a Chica mamãe”. Aqui, a canção emerge como espaço de afeto, gesto político e continuidade histórica, sem abrir mão da experimentação.

Já em Alga, o percurso toma outra direção. É a única faixa em que o som acústico do pandeiro está ausente. No lugar da pele e das platinelas, ouvimos camadas de sintetizadores que constroem uma paisagem sonora líquida, movente, submersa. Sergio canta uma letra-poema que flutua sobre essa base eletrônica como quem desliza por uma corrente. Se o álbum começa com um rito de abertura, ele aqui se permite um mergulho contemplativo — um ponto de suspensão dentro do fluxo.

A última faixa do álbum, Renegue não, tem a formação de pandeiro e voz. É o único momento do álbum em que não se ouvem camadas eletrônicas, e justamente por isso a faixa funciona como uma espécie de epílogo acústico, um retorno à origem, mas já atravessado por tudo que se ouviu antes. Trata-se de um forró de estrutura simples em aparência, mas com seus momentos de instabilidade. Pandeiro e voz se alternam no papel de eixo e desvio, ora um sustenta o pulso enquanto o outro explora tensões melódicas ou rítmicas, ora os papéis se invertem, criando um jogo em espelho. O resultado é um duo que se equilibra na oscilação, como se a própria matéria da canção fosse o movimento entre presença e ausência, chão e deslocamento. Depois de tantos atravessamentos eletroacústicos e tensionamentos da forma, Renegue não soa como um assentamento — não porque devolve o pandeiro a seu lugar de origem, mas porque reafirma que não há mais um só lugar onde ele habita.

Diria que Boca do Tempo é, em última instância, o território onde tradição e experimentação não apenas se encontram, mas se reconfiguram mutuamente. Sergio Krakowski não abandona o pandeiro que herdou, ele o escuta com outras perguntas, impõe-lhe outros gestos, desafia sua função canônica e propõe novos sentidos. Ao longo do álbum, o instrumento oscila entre memória e invenção, entre estabilidade e deslocamento, entre som acústico e resposta algorítmica. O que se escuta é, ao mesmo tempo, o eco de uma linhagem e a afirmação de uma gramática própria.

Finalizo sublinhando que o álbum não é apenas uma obra de engenho técnico ou pesquisa sonora. É uma proposição sensível e, nesse sentido, política porque propor outras formas de escuta é também propor outros modos de perceber, imaginar e estar no mundo. A abertura à instabilidade, ao improviso e à novas sonoridades alarga a experiência estética, mas também a subjetiva. É um chamado a desautomatizar os ouvidos, a desacostumar os gestos, a reeducar o tempo.

E nisso reside talvez sua força mais duradoura, fazer do pandeiro, esse instrumento tão cotidiano na experiência do brasileiro, uma máquina poética de descondicionamento. Ao fim e ao cabo, se trata de um trabalho rigoroso, radical e generoso, capaz de mover não só as estruturas do ritmo, mas também as formas da escuta. Por tudo isso, aplaudo o álbum com entusiasmo.

Imagem centralizada e responsiva

Marcos Ramos é Doutor em Letras, publicou Teorias da Canção: Percursos, Fundamentos e Metodologias – uma introdução, entre outros livros. É professor visitante na Universidade Nacional da Colômbia e pesquisador de pós-doutorado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.